sexta-feira, 30 de julho de 2010

Este também foi escrito por uma moça.

Hoje fui violada por uma memória. 
Comecei por tentar resistir-lhe, acabou por tomar conta de mim. Por momentos deixei de estar onde estava para estar onde estive. Acabei por ter prazer. Lembrei-me automaticamente de uma frase da Faíza Hayat que é qualquer coisa como “os homens cultivam o esquecimento, as mulheres cultivam a memória”. Dos homens não vou escrever, porque não sei. Não sou, nunca fui, e embora a ciência torne arriscada a palavra impossível, parece-me improvável que venha a ser, um homem. Questionei-me então se seria um masoquismo próprio das mulheres cultivar a memória. Talvez. 


Pensei em mim. Não as cultivo, mas gosto que me apanhem desprevenida. Gosto que as memórias me arrepelem, que me surpreendam de vez em quando. Às vezes magoa, mas é uma dor bonita, viciante, que me acaricia o rosto, porque me magoei enquanto respirava. Se a memória é minha, fui eu. O que sou hoje é o que senti ontem. 


Já houve alturas em que tentava apagar memórias, desisti, porque nunca sabia quais as memórias que me apagariam. Resistir às memórias parece-me cruel, é mais uma forma de me negar.


Com as memórias, como com tantas outras coisas, acredito que o truque é aceitar. Tudo aquilo que tentei largar agarrou-me com mais força. Porque fechar gavetas com pontas de fora, é inútil.

terça-feira, 27 de julho de 2010

quinta-feira, 22 de julho de 2010

A história das moelas

No meio de uma conversa completamente banal que estava a levar em modo de piloto automático, sou de repente acordada. (pergunto eu:) “Mas gostas dele?”, “Não sei. Quer dizer, gosto... mas não é aquela coisa... acho que só podemos gostar “daquela” maneira quando é a primeira vez. É preciso ser uma folha de papel em branco para amar”. Sorri, em acordo. Estas palavras vieram da pessoa mais improvável. A conversa seguiu mas a história da folha em branco ficou. Lembro-me de uma frase que publiquei ainda no Sobre as Nuvens: “Só amei uma vez na vida. Se soubesse o que sei hoje teria provavelmente sido diferente. Se tivesse sido diferente nunca saberia o que sei hoje.” É preciso ser folha em branco e só se é folha em branco uma vez. E nessa vez podemos ser riscados, dobrados, amarrotados, rasurados de todas as maneiras. Depois não. Podemos apagar os traços, mas a pressão do lápis e os vincos ficam. lmperceptivelmente, mas ficam, desenhados no silêncio do papel.



O corpo só é acordado uma vez, todas as outras são repetições.


Da primeira vez tudo pode acontecer. Da primeira vez é tudo puro e verdadeiro, sente-se mais, é tudo inteiro.


Da primeira vez entrega-se. Não são precisas certezas, acredita-se. Aceita-se. Anseia-se, corre-se, espera-se. Oh, suspira-se. Da primeira vez confidencia-se, revela-se, dizem-se segredos. Da primeira vez diz-se tudo, dizem-se as vezes que for preciso. Da primeira vez valoriza-se, agradece-se. Da primeira vez, luta-se, tenta-se, dá-se, mais ainda. Da primeira vez fazem-se loucuras, é-se espontâneo. Da primeira vez compram-se flores e escrevem-se cartas de amor. Da primeira vez desenham-se futuros. Da primeira vez arrisca-se tudo. Da primeira vez não se medem os prós e os contras, não se racionaliza nem se contabiliza, não há contractos nem se medem os dotes, não interessa o que os outros pensam. Da primeira vez há amor. Só amor (como se só amor não chegasse, pensa-se). Da primeira vez ainda não se sabe como dói, não se sabe como parte, como rasga. Não se sabe como é vazio, e incompleto, como falta, como sufoca.


Da primeira vez pensamos que será a única, não questionamos sequer se será a única porque não cabe em nós a ideia de repetir tudo de novo. E se calhar é mesmo assim. Se calhar deixámos todos qualquer coisa na primeira vez.


Tenho para mim que não era de ti, era de mim, da forma como te senti. Foi a primeira vez. Hoje, sei que não eras tu. Só não sei ainda qual era o segredo daquelas moelas que fizemos juntos. Foram as melhores... Estes anos depois, continuo a tentar repeti-las todas as vezes que cozinho moelas, nunca consegui. Desconfio que o segredo não estava nas moelas.

Princesa da Ervilha

by Nathalie da Silva


"Não leio o teu blog porque não tem imagens" disse a Nathalie. Mas o desejo de o ler era tão grande, que resolveu a própria o problema em questão e desenhou-nos uma bonita princesa de vestido vermelho.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Aforismos I

Há poucos códigos mais certos e silenciosos que o encasar do último botão. Porque há coisas que só se dizem quando estamos nus e não há roupa para vestir as palavras.

Este post foi escrito por uma mulher. Que não se espere coerência ou objectividade.

Dançam-me no olhar imagens do fumo a desaparecer devagar nos contornos das noites que passei acordada à janela com o cigarro na mão. Procurava desaparecer com o fumo, misturar-me com a noite. O candeeiro de luz amarelada iluminava a magnólia e tingia de ouro as flores brancas. E eu sentia-me especial, porque poucas pessoas se estariam a sentir tão destruidas como eu, e isso também é ser especial. Houve dias em que juntava um copo de vinho ao cenário, e nesses dias podia morrer porque era bonito encontrarem com o corpo um copo de vinho meio bebido, uma garrafa vazia e um cinzeiro a abarrotar de beatas.

O sofrimento é belo. Na arte, enquanto elemento estético, a dor é incontornável. Na vida não. Por opção ou postura perante a vida, não.

Há aquele estereótipo do artista, despenteado e bêbado, com o cigarro numa mão e a caneta na outra, numa mesa qualquer de um café rasco com esplanada. No caderno deitado na mesa, palavras ou traços.

Ao artista perdoa-se tudo, pode tratar mal a mulher, ou cuspir no chão, pode não pagar a renda e dizer asneiras, pode fumar droga ou injectá-la nas veias, ou fazer aquilo que lhe passar pela cabeça, como ter sexo com uma prostituta, ou com duas ou com três ou com homens, ou com todos ao mesmo tempo.

Ao artista perdoa-se tudo, porque ninguém o compreende, e nem tenta, porque não se chega lá. O artista é um génio, logo tem de estar desiludido com a sociedade medíocre, tem de rejeitá-la e gozar com a cara dela. Não tem tempo nem paciência nem disponibilidade para se deixar surpreender. Isso significaria estar aberto e pelas aberturas podem entrar correntes de ar que tirem as coisas do sítio onde estão, tão bem arrumadinhas.

Não percebo quando é que a felicidade passou de moda. Não compreendo porque é que as pessoas deixaram de utilizar a inteligência e a criatividade para viver, com mais significado. Achar que a vida não tem mais nada para nos inspirar é estúpido. Ser passivo-deprimido-céptico-ou-o-raio-que-o-parta não é moderno, é cobarde.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

:)

Hoje vivi um daqueles momentos raros, quase mágicos, tão simples, que nos fazem abrir um sorriso, espontâneo, incontrolável. Saí de casa e dirigi-me ao carro. Estava ao mesmo tempo a chegar uma mãe com um filho, pelos seus 3 anitos. Reparei que o miúdo olhou para mim a sorrir, mas não liguei, pensei que fosse coincidência. Estava já a ligar o carro quando o vi parado do lado de fora, a olhar-me pela janela, e a acenar-me com um sorriso rasgado. Não lhe resisti. Sorri e acenei de volta. A mãe esperava a 5 metros dele, à porta do prédio, e ele desceu a rua só para me acenar. Ainda o vi voltar para a mãe que o recebeu com outro sorriso, orgulhoso. Eu arranquei e desci a rua, sempre, sem parar de sorrir. E foi assim que a espontaneidade de uma criança colocou 2 adultos com um ar cansado a sorrir, como se tudo fosse perfeito.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

O meu avô

O meu avô comove-me. Chega-me ao coração antes de me chegar à cabeça. Ainda nem percebi o que ele está a dizer e já tenho os olhos molhados e só me apetece abraçá-lo e não existem guerras nem fome nem desemprego nem injustiças sociais quando o meu avô sorri para mim e me diz que sente falta dos nossos passeios de bicicleta. E eu sinto mais falta ainda. Agradeci-lhe ter a coragem de mo dizer. Porque o meu avô é o meu lado feliz, simples. E os passeios de bicicleta e os pinhões a saber a terra são a metáfora dessa felicidade. Naquela altura a minha bicicleta era mais pequena e para olhar para o meu avô eu tinha de olhar para cima. O meu avô sabia tudo. Hoje, já não tenho de olhar para cima, e o meu avô continua a saber tudo. Acabámos a falar do 25 de Abril. Foi nesse dia que o meu avô disse uma frase que me acompanha: “eu não quero acabar com os ricos, quero acabar com os pobres”. Saí de lá a chorar. Era toda pássaros a cantar e roseiras carregadas de flores e camas de bonecas e serrotes, pregos e latinhas de tinta, uma escada íngreme para um sótão abandonado e um jogo de madeira, pintado à mão. E um sorriso, tantos sorrisos.