terça-feira, 29 de novembro de 2011

Como num tabuleiro de Xadrez

Fui assistir a uma apresentação do último livro de Valter Hugo Mãe. A dada altura alguém comenta que ele tem boas personagens femininas, que conhecia bem as mulheres, criando personagens femininas consistentes. Depois, não sei o que ele respondeu porque me distrai a pensar: primeiro, que poderia ser bom para um homem conhecer bem a natureza feminina, que poderia evitar mal-entendidos, depois, que de nada serve nem a ele nem a elas que ele as conheça - na hora de agir não podemos ir contra a nossa natureza, mesmo que a nossa natureza vá contra a natureza do outro. Um homem pode conhecer uma mulher, saber que a vai magoar mas magoá-la na mesma. Não é maldade, é honestidade. E outra acção seria fingida.

Sai de lá, e na feira do livro que estava a acontecer cá fora comprei o livro “Nada de Dois” do Pedro Mexia. Já em casa li-o de uma vez. Quando cheguei à parte que transcrevo abaixo dei por mim a pensar que o Mexia também conhece as mulheres, não pelo temática do texto, mas pela consistência e conhecimento com que construiu a personagem feminina:

“Joana:
- Ele não era meigo, eu gostava muito disso. Os homens meigos parece que pedem desculpa. Ele sabia muito bem o que fazia. Há quem ache que não há nada para saber, mas claro que há, e quando alguém sabe e mostra que sabe é muito bom. É como se fosse invadida. (...)Era um homem, percebes? Os homens não têm que pedir desculpa. Já sei, vais pensar que ele foi “violento”, não conheces meio-termo, tu, quem não é doce é violento. (...) tu achas que um homem deve ser meigo e eu queria que fosses violento, tu querias uma espécie de igualdade, ou ficarias um degrau abaixo, tudo de porcelana, cuidadoso e frio e morto. Ele não era meigo, não precisava disso, eu queria-o dentro de mim, espada na bainha, não é?, tudo muito etimológico, e ele sabia coisas (como ele sabia coisas) (...) e mesmo no primeiro ano do nosso casamento, quando tudo corria “bem”, como dizem os amigos fúteis, e eu já estava farta de um homem meigo, de um homem que pede desculpa, e tu vias algumas vezes, algumas marcas eu conseguia esconder, uma vez andei de gola alta em Julho porque o tinha no meu pescoço, coisa que tu talvez aches violenta, como se isto fosse tudo amável, uma emoção como tu dizes, quando isto é tantas outras coisas, não contigo, tantas outras coisas, um corpo que nos deixa cansado e marcado, nada de homens meigos, que são como desertores, ele sabia coisas e sabia-me bem (...).”
Nada de Dois, Pedro Mexia


Compreendo que estes homens conheçam bem as mulheres, eu também sinto mais facilidade em compreender os homens, mais que em compreender mulheres, como eu. É mais distante, permite uma análise mais fria, exterior.

(Lembro-me de um texto de um autor homosexual, que nas descrições das relações heterosexuais conseguia transmitir uma força e uma verdade que não eram tão evidentes  nas relações homosexuais, com as quais estaria mais familiarizado, e assim, mais exposto às suas complexidades.)

Mas lá está, na hora de agir é indiferente, prevalece sempre a minha natureza, de mulher. Já disse a um homem: se isto fosse um jogo, esta seria uma péssima jogada. Sem pausas, segui dizendo-lhe tudo o que sentia, que gostava dele, que se tinha tornado importante para mim. Sabendo que dizer (mais que sentir) é um dos maiores pecados da minha natureza.

Não sei se esta subordinação da inteligência à natureza é uma maldição ou um dom. Mas será certamente uma condição.

Curiosamente foi esse homem que me apresentou Valter Hugo Mãe, ao enviar-me um texto do blog do autor:

“estás a tornar impossível resistir-te. e eu vou desabar sobre o teu corpo como aquela terra que rolou no inverno sobre as nossas casas. lembras-te. tínhamos cinco ou seis anos e acreditámos que aquilo era o mundo tomado de nervos por fazermos tanto barulho com a bola a bater nas paredes. pois agora será assim também. quero cobrar por quanto me confundes, que nem ouço nada mais, tão agudo se tornou o ruído do teu decote” 

22/09/09 Valter Hugo Mãe

Eu quis que aquele texto fosse daquele homem para mim, mas soube-o sempre como uma movimentação estratégica, como o movimento em L do cavalo. Para chegar a algum lado ou simplesmente para exibir agilidade. Mais uma vez a consciência. E a subordinação às nossas naturezas. A dele, de jogador, provavelmente consciente de que me poderia magoar, mas jogando. A minha, consciente de que era um jogo, deixando-me levar.

Alguém me disse uma vez que o que separa os homens dos animais é a capacidade de resistir ao desejo. Eu digo que o que separa os homens dos animais é a capacidade de sabermos que não estamos a resistir ao desejo. A consciência. Sabermos que a nossa natureza prevalece à nossa inteligência.

Não precisamos de concordar com as pessoas para as admirarmos. É como gostar de escritores diferentes, que escrevem coisas diferentes, que funcionam em situações diferentes. Também se podem desejar homens diferentes, em ocasiões diferentes.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

*Godard/Truffaut – Os 2 da (Nova) Vaga - Teatro Virgínia, 2 de Novembro

Godard vem a Torres Novas num documentário*. Godard, um amor ao primeiro filme. A dose certa de admiração e curiosidade indispensável a qualquer história de amor. Admirei os argumentos, a estrutura, a consistência. E intrigaram-me os finais. Godard tem o hábito de matar as suas personagens principais. Por mais bela que essa morte fosse, vi-a como exagerada na sua repetição, entendi-a quase como uma assinatura.

Como alguém uma vez me disse, em Godard é tudo poesia. Poesia conseguida com a atenção e dedicação a cada detalhe. Godard sabe que essa poesia só existe enquanto ele a controla.

Entendi (o meu entendimento de) Godard no dia em que encontrei uma fotografia de Jean-Paul Belmondo, quase oitenta anos, com a sua namorada “coelhinha”, que, ao que parece, também lhe estorquiu dinheiro. Godard matou-o em Michel e Ferdinand, porque era o único caminho para a imortalidade das suas personagens. Encontrou na morte uma forma de impedir que se tornassem banais, reais – preservando assim a poesia com que foram construídas. Eles viverão sempre naquele momento, em que deram tudo, foram mais. A morte confere imortalidade ao travar o movimento do tempo, gera finais dignos. Godard poupou assim as suas personagens à corrosão do tempo, da sociedade - da condição humana no geral. 


A lei natural das coisas é que elas amadureçam numa evolução ascendente e que depois pereçam, numa evolução descendente. A fruta nasce, amadurece e apodrece. O mesmo acontece com os corpos, podendo ou não acontecer com as almas. É condição das coisas vivas que a beleza se desvaneça. A única forma de a preservar é destruí-la antes que tal aconteça.


Há momentos assim. Que deveriam acabar enquanto o final é digno. Para certos momentos permanecerem belos, não podem ter continuação, pois esta será inevitavelmente descendente.



Le Mépris (1963) - Jean-Luc Godard

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Galeria Talho

É preciso contextualizar: Um talho feito galeria, um fumeiro feito armazém, duas telas feitas origem. O desperdício enquanto conceito.
Visitei a exposição de inauguração da galeria de um conhecido, sabendo apenas que o espaço era um talho, que funcionava como tal alguns dias por semana.

Só pode ser uma mais valia cruzar um espaço (talho) com uma temática aparentemente díspar (arte). A aparente desconexão estimula a interligação de conceitos, numa experiência de laivos sinestésicos.
Na arte deixei de procurar a obra, procuro a experiência. A obra existe, mas como elemento, não como finalidade. 


A dada altura da visita, chega uma velhota. Conta as suas histórias e no final deixa um pão caseiro, cozido nessa manhã, e um pacote de manteiga, “para engordar as cachopas”, justifica-se, rasgando um sorriso malicioso, num rosto que carrega nos olhos a profundidade dos anos.

É a vertente não planeada que acaba sempre por me envolver. O espaço para o acidente/incidente. Toda a experiência se enaltece perante o acaso, ou não fosse o plano a antecipação de uma experiência, constrangendo assim a percepção da mesma. A expectativa mata tudo. O imprevisto, enquanto potenciador da experiência, é imensurável.

Neste caso, fazer de um talho galeria já trazia em si um quase acidente, a sensação de desencaixe que possibilita infinitos encaixes, pelo espaço que existe para eles.

É exactamente essa a função da arte para mim, que me tire de um sítio e me leve para outro, que me faça mexer, relacionar, estabelecer pontes. 

No final, encontrei exactamente aquilo que procuro aquando de uma experiência estética, alguma desconstrução, e a quebra de lugares comuns.

p.s.: não era por aqui o objectivo do post, mas não resisto a comentar a beleza improvável da dicotomia carne/arte, enquanto alimento físico/metafísico.





terça-feira, 18 de outubro de 2011

Os cuidados na formatação de texto

“Chegamos assim à hora da verdade sendo necessário tomar medidas de fundo que assegurem uma consolidação sustentada das finanças públicas.”
in Relatório OE2012 



Não me perguntem porquê, mas assim como quem não tem nada melhor para fazer, fui dar uma vista de olhos ao relatório do Orçamento de Estado para 2012. Li o que li na diagonal, não é uma leitura muito apelativa(passe o eufemismo). Chamou-me no entanto a atenção o detalhe (passe outro eufemismo) acima. A hora da verdade como sendo a única expressão no documento inteiro a negrito sublinhado. (Sim, que não tendo lido o documento completo, scrollei-o todo. (Hei-de ler aos poucos, naquelas meias-horas.))

Passe o tom determinado a arranhar o pré-apocalíptico e fiquei sem saber muito bem o que significava aquilo. Será que até agora tem sido tudo mentira? ou mais estranho ainda, que a partir de agora será diferente? Ainda passeei o rato pelas palavras em questão na esperança de um link que me explicasse o que era afinal a hora da verdade. É que estes conceitos vagos estão um bocadinho fora do meu alcance rude de portuguesa do interior. O tempo é aquela coisa que se diz que é psicológica (as coisas psicológicas são sempre muito complicadas), e neste caso, a hora parecerá a todos muitos anos, suspeito. Quanto à verdade, pior ainda, ninguém sabe muito bem o que significa, e há até quem diga que cada um tem a sua. Ainda assim, é possível que descanse as pessoas, mesmo que não se saiba muito bem o que é, diz-se dela que é boa.


Para terminar, devo elogiar o cuidado. A verdade, num documento de estado, não fosse ela sublinhada e a negrito, passaria certamente despercebida.

p.s.: Ao contrário do relatório em causa, este texto é redigido ao desabrigo do novo acordo ortográfico.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Curtas VI

A ganância é uma questão de oportunidade. Os ricos não são mais gananciosos que os pobres. Têm é mais oportunidades.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

A vida e a morte de um soutien

Hoje deitei fora o meu soutien favorito, marcou uma etapa de mudança.

Foi o primeiro soutien bonito que comprei.

Não era um soutien qualquer. Celebrei nele a mulher que sou, que deseja, que ama, que se ama. Que se aprendeu a amar com aquele soutien. E isso não é coisa pouca. Ao amar o meu corpo descobri nele outras vozes. No meu, um corpo urgente, que sente, se ressente, sensível, aos estímulos do tacto e da mente.

Nesse amor descobri-me pela primeira vez completa. É o lado sensual que melhor exprime as ligações entre o corpo e a alma, nunca o eu é tão inteiro como nessa celebração.
É no sexo que estamos mais completos, quando o corpo fala com a mesma eloquência que o espírito.
Não consigo deixar de admirar, mesmo venerar, este lado. O proibido, primitivo. Tenho para mim que quanto mais primitivo mais verdadeiro, menos refinado e educado, espontâneo. E admiro essa verdade como se admiram as coisas impossíveis.


Às vezes tem de ser assim, por muito significado que as coisas tenham, por muito que as tenhamos adorado, às vezes, estão simplesmente demasiado usadas, gastas, cansadas de ser tanto.



p.s.: não foi hoje, foi há uns dias, mas o querido blogger não me permitiu publicar mais cedo.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Curtas V

Na comunicação escrita de uma relação afectiva nunca gostei de abreviar a palavra beijo. 
É sempre mau sinal quando se abrevia um beijo.

domingo, 8 de maio de 2011

Domingo II

Eu e ele discutiamos a possibilidade de recriar aquelas noites. Aquelas que guardamos com tanto saudosismo. “Chá de Letras”, de imagens, do que quer que fosse trazido para aquela sala e debatido até ao amanhecer.
Saudosismo vão, não só pela dificudade de juntar os intervenientes, mas, e mais, pelas formas diferentes que fomos assumindo, ajustando-nos, cada um, ao crescente - e descrente - conteúdo.

Morreu o ardor com que especulávamos o mundo, com que questionavámos e duvidávamos, dispostos a negar tudo e a acreditar em tudo. Deixávamo-nos cativar pelas interrogações, era tudo estímulo para as nossas mentes virgens e despreconceituosas. Adorávamos a noção de saber nada, ter tudo para explorar.

Hoje, deixámos de especular e passámos a armazenar factos, actualidades e opiniões alheias  - como se isso importasse – urgentes na acumulação mas dormentes no pensamento, na forma como (não) nos deixamos afectar. Arrumamos os dados em caixas, correctamente etiquetadas, ao alcance rápido da língua, para utilizar em caso de necessidade de valorização social, numa conversa qualquer, que poderia acontecer com qualquer par de pessoas que siga os requisitos mínimos de estar minimamente informado acerca de meia dúzia de assuntos “certos”.

Nessa altura, brincavam comigo e desafiavam-me a fundar o PPV, Partido dos Prados Verdes. Dos Prados Verdes, pela ingenuidade optimista com que pintava tudo. Via o mundo terno e infinito, era tão romântica e idealista. Sorrio, complacente comigo, ao mesmo tempo que me apercebo que não sei se sinto mais falta daquelas noites, se daquela eu.

terça-feira, 5 de abril de 2011

A caixa que veio de avião

Desta vez deixei-me desarrumar de tal maneira que reorganizar os livros na estante da sala não seria suficiente. Fui para o quarto. Remexi todas as caixas, gavetas e prateleiras. Assumi na estante novas funcionalidades consoante as novas prioridades. Deitei fora. Tanta coisa. Uma caixa de cartão, que transportou um presente. Preciso de espaço. Enchi 3 sacos de lixo. Engraçado chamar lixo àquilo que no preciso momento anterior à decisão de o atirar para o saco era uma recordação. Gosto de deitar fora. Esvaziar. Fosse tão fácil deitar fora as pessoas quanto os presentes que nos deixam.

És dois.

O que és e o queres ser. És matemática quando queres ser poesia. És pedra quando queres ser vento. És tu quando quero que sejas outro.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Saltos para a água

Saltei das pranchas das Piscinas Municipais pela primeira vez aos 13 anos. Ainda no mesmo Verão avancei para a 2ª (7m), e precisamente no último dia, para a 3ª (10 m). Foi um salto ímpar. O Verão acabou. Passei o Inverno a aguardar o Verão seguinte. Ele chegou. Eu sabia que sabia, sabia que nunca me tinha magoado, mas nesse Verão até a 2ª prancha me assustava. Conhecia o caminho, já o tinha percorrido, mas não era capaz de repeti-lo, estava demasiado presa. Quem salta ou saltou, sabe que é tudo uma questão de não controlar o salto, há uma direcção e uma velocidade, a partir daí o corpo fica entregue à sua natureza. É preciso confiar. Acabei por saltar da 2ª prancha, mas foi preciso mais um Verão chegar perto do fim para voltar à 3ª prancha. Desta vez saltei mais alguns dias e prometi a mim mesma não hesitar no ano seguinte.

Assim, na imortalidade dos meus 15 anos nenhum mergulho era perigoso. E Lá ia eu avançando pelo Verão na direcção do próximo salto. Foi o ano em que evoluí mais, da 1ª e da 2ª prancha, fazia cadeirinhas, saltava de cabeça, ainda arrisquei uns mortais na 1ª que nunca foram muitos brilhantes. Da 3ª só de pés, mas porque um amigo me disse que era realmente perigoso saltar de cabeça, a piscina não tinha comprimento. Lembro-me de uma tarde em que ouvi um amigo lá em baixo “ela tem mais tomates que eu!”. Fez-me sorrir.

No Inverno seguinte, comecei a namorar, pela primeira, como se fosse para sempre. Tornei-me mortal e nesse Verão a 3ª prancha não me viu, a 2ª só me viu de pés, e na 1ª pouco mais que uns humildes mergulhos de cabeça. Raramente fui às piscinas, de resto.

2 anos depois, com os fresquinhos 18 e a aprender pela primeira vez a finitude das coisas infinitas, voltei às piscinas, queria sobretudo voltar às pranchas. Comecei devagar, não fui à 3ª, foi fechada por razões de segurança. Fui à 2ª, saltei de cabeça, fiz as minhas vergonhosas tentativas de mortal na 1ª. Achei que morria, durante os segundos em que o ar não entrou após uma desastrosa entrada de peito na água. Voltei à superfície e era de novo imortal. E foi nesse Verão que aprendi o mergulho para dentro, aquele de que mais me orgulho. O símbolo da minha readquirida liberdade.

Era livre. 

A liberdade é um conceito estranho. Ninguém é livre quando se importa. E quem não se importa, é livre para quê?


Isto tudo porque me lembrei do Verão, daquele em que não fui capaz de saltar da prancha, mesmo sabendo que conseguia e que era bom, e ainda hoje não sei porquê.

p.s.: E oficializo assim mais uma resolução para 2011: este Verão há saltos para a água!