sexta-feira, 27 de agosto de 2010

N. - Que é isso?
A. - É uma cena para pôr nos lábios.
N. - Cheira bem. Dá vontade de comer.
A. - Pois. É por isso que o ponho nos lábios.
N. - Nos quais?

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Domingo

Se existe objecto mutável na minha casa é a estante. Não sou de sobrecarregar os objectos com significados nem os significados com objectos. Considero, no entanto, ingrato reduzir o livro a objecto. Gosto de possuir livros, não os possuindo porém, como não se podem possuir ideias.

Domingo cheguei desarrumada a casa, decidi portanto, rearrumar a estante. Para me acompanhar, fugindo ao excesso de palavras, escolhi Beethoven. Despi a estante de livros e construi com eles vários montes sobre a mesa, onde os misturei propositadamente, obrigando-me assim a debruçar-me sobre cada um. Fui pegando neles, um a um, olhei-os com admiração e algum desejo. Voltei a colocá-los na estante sob outras lógicas. Pelo meio alguns casos complicados, como aquele pequenino de provérbios japoneses, que não sendo outra coisa, acabou filosofia.
Terminada a tarefa peguei em “Platero e eu” (Juan Ramón Jimenez) e sentei-me na cadeira de baloiço junto à janela. Abri onde o tinha deixado:


Domingo
(...)
Todos, até o guarda, foram à aldeia ver a procissão. Ficamos nós sozinhos, Platero e eu. que paz! Que pureza! Que bem-estar! Deixo Platero no cimo do prado e deito-me, debaixo de um pinheiro cheio de pássaros que não se vão embora, a ler. Omar Khayyám...
No silêncio que fica entre os repiques, o fervedouro intenso da manhã de Setembro ganha rumor e presença. As vespas aurinegras voam à roda da videira carregada de sadios cachos moscatel, e as borboletas, que andam confundidas com as flores, parece que se renovam, numa metamorfose colorida, ao revoar. A solidão é como um grande pensamento de luz.
De vez em quando, Platero deixa de comer palha e olha para mim... Eu, de vez em quando, deixo de ler e olho para Platero...”


Olhei de novo para a estante, e assim, meio que por acaso, reparei que estava tudo no sítio certo. Fechei os olhos e deixei a tarde descansar em mim.